Sílvia Pérola[i]
1 – Inconstitucionalidade do art. 896-A, § 5º, da CLT. Irrecorribilidade. – Afronta ao princípio de acesso à justiça (inciso XXXVI [1] do Art. 5º/CF)
No próximo dia 28 de setembro, o Órgão Especial do Tribunal Superior do Trabalho vai apreciar a arguição de inconstitucionalidade do parágrafo 5º do art. 896-A da CLT: ARGINC- 1000845-52.2016.5.02.0461. Já é a segunda vez que, por provocação do próprio TST, é suscitado tal incidente, novamente, pelo Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão. É um momento esperado pela advocacia e pelos jurisdicionados, porque longe de constituir, simplesmente, filtro recursal, na prática, no mais das vezes, trata-se de uma forma de se eliminar recursos.
Sob o manto do não reconhecimento da Transcendência, de forma sistemática e reiterada, o jurisdicionado tem tido negado o seu acesso à Jurisdição, no TST, e, no caso do trabalhador, são cassados os seus direitos fundamentais, constitucionalizados em longos 34 (trinta e quatro) incisos do art. 7º da Constituição Federal. Inúmeros recursos estão sendo julgados, de forma monocrática, já com a determinação da baixa dos autos e certificação de trânsito em julgado, sem a mínima possibilidade de se recorrer, porque, repita-se, os autos baixam, sob o fundamento do § 5º[2] do art. 896-A da CLT, que prevê a irrecorribilidade no caso de não reconhecimento da Transcendência no bojo do agravo de instrumento. E os embargos de declaração ou agravos internos dessas decisões têm sido apenados com aplicação de multa, por protelatórios, e, até por litigância de má-fé, mesmo quando se trata de trabalhador terceirizado, em tema de repercussão geral, com flagrante cerceamento do direito de defesa (art. 5º, LV/CF).
Essas decisões unipessoais, que impedem o jurisdicionado de acessar a jurisdição, são proferidas totalmente à margem dos critérios estabelecidos nos incisos I, II, III e IV do mencionado permissivo consolidado[3], como, por exemplo, quando o relator da decisão recorrida invoca “óbice processual” para concluir pela inexistência da Transcendência. E, o mais grave, o recurso de revista, cujo agravo de instrumento foi equivocadamente denegado, traz, muitas vezes, em seu bojo, uma Preliminar de Nulidade do Julgado por Negativa de Prestação Jurisdicional, Tema 339 da Repercussão Geral da Suprema Corte, que não está contemplada na possibilidade de denegação por ausência de Transcendência.
Bom, nestas hipóteses repetidas, o TRT – Tribunal Regional do Trabalho – nega a entrega de jurisdição. A revista vem muito bem manejada sob o rigor quase intransponível das Leis 13.015/14 e 13.467/17. O primeiro juízo de admissibilidade das vice-presidências dos TRT´s, lastimavelmente, e, apesar de o TST ter sinalizado com a necessidade de completude do juízo de prelibação, com a edição da Instrução Normativa nº 40, no mais das vezes, com honrosas exceções, continua precário e insuficiente e as denegações são feitas de forma genérica e desfundamentada, sem enfrentar os argumentos e os requisitos do recurso. Só resta à parte a interposição do agravo de instrumento que, infelizmente, muitas vezes, tem seu seguimento denegado, monocraticamente por ausência de transcendência.
2. Afronta ao princípio da colegialidade
Isso revela gravíssimo comprometimento da missão institucional do Poder Judiciário – que é entregar a Jurisdição – e violação da competência do Tribunal Superior do Trabalho, que deve entregar essa Jurisdição como órgão COLEGIADO e não apenas por um magistrado (por óbvio que as decisões unipessoais constituem exceção que se contêm nos exatos limites da previsão legal), senão, o Estado não investiria no aparelhamento de um órgão colegiado (em todos os sentidos, não só de logística, mas de previsão no ordenamento jurídico como tal); bastaria o juízo singular para resolver todas as demandas. Mas não é esse o princípio que ilumina a teoria geral do recurso.
O Tribunal Superior do Trabalho é um órgão do Poder Judiciário (art. 92, II-A/CF) e é um órgão da Justiça do Trabalho (art. 111, I, da CF), composto de vinte e sete ministros e, como tal, deve dizer a jurisdição. A reiteração de decisões monocráticas, à margem da forma legal e, suprimindo, mais do que isso, impedindo o acesso aos órgãos fracionários, como são as Turmas, que é quem detêm competência para julgar o recurso de revista e o agravo de instrumento e, ao final, matando a possibilidade de acesso ao órgão uniformizador do TST, que é a Seção de Dissídios Individuais e, por consequência, impedindo o exaurimento das vias recursais na Justiça do Trabalho, fere de morte as mencionadas disposições constitucionais. Essa usurpação de competência do órgão fracionário competente para julgar o recurso de revista acaba por redundar em usurpação da própria competência da Justiça do Trabalho, com grave ofensa ao art. 114 da CF, porque não se consegue, ao final, a entrega de jurisdição constitucional.
Embora haja legislação prevendo a possibilidade de o relator denegar, de forma monocrática, o agravo de instrumento, pelo não reconhecimento da Transcendência (art. 896-A da CLT), e, ainda, inconstitucional previsão de irrecorribilidade ( § 5º), é abusiva a decisão do relator que, sequer, identifica em qual ou em quais dos critérios do § 1º do art. 896-A lastreia sua decisão, aliás, sequer, fundamenta sua decisão, eliminando o recurso do agravante, de forma inexorável, banindo seu direito de defesa com os meios e recursos a ela inerentes. É mais abusiva ainda esta decisão quando tramita no TST a arguição de inconstitucionalidade do parágrafo 5º do art. 896-A da CLT[4], a recomendar, no mínimo, o sobrestamento do feito até que o Órgão Especial decida a respeito. Por essa razão, é cabível aqui o Mandado de Segurança, uma vez que a própria Corte, como Colegiado, conclui pela necessidade de apreciar a constitucionalidade do referido parágrafo, impõe o sobrestamento dos feitos que se referem à aplicação do preceito sobre o qual paira o questionamento de constitucionalidade, em razão da obediência hierárquica que, acredita-se, devam ter os magistrados do Tribunal, bem assim, em razão dos efeitos nefastos e devastadores dessa aplicação, como o da irrecorribilidade, o que tem resultado em consignação, de forma monocrática, de certificação de trânsito em julgado e imediata baixa dos autos.
A legislação da Transcendência, tal como regulamentada (ou não regulamentada, pode resultar em negativa de acesso à entrega de jurisdição, fim da função institucional do Tribunal Superior do Trabalho, que é uniformizar a jurisprudência em território nacional, prevalência de decisões monocráticas em detrimento das decisões colegiadas (no caso da irrecorribilidade, nunca será possível acessar o colegiado), insegurança jurídica e cerceamento do direito de defesa
Com efeito, o relator, sozinho, tem o poder discricionário de obstaculizar o prosseguimento de recurso, como tem acontecido, que trazem em seu bojo, inclusive, uma preliminar de nulidade do julgado por negativa de prestação jurisdicional; e não, só, trazem em seu bojo, muitas vezes, temas inéditos que nunca chegarão a ser apreciados pela Seção de Uniformização de Jurisprudência do TST, que é a Seção de Dissídios Individuais, como foi aquele relativo à distribuição do ônus subjetivo da prova, só enfrentado pela SDI-1 do TST em 12/12/2019. Também aqui, a decisão unipessoal prevalece sobre a decisão colegiada, razão de existir de um Tribunal; aliás, não há falar-se na hipótese em decisão colegiada, haja vista a irrecorribilidade da decisão que deixa de reconhecer transcendência ao recurso.
Muitas vezes, o que se dá é que o mesmo relator que nega seguimento ao recurso por ausência de transcendência é o mesmo que admite os Embargos à SDI em recurso idêntico, com a mesma matéria e partes. Não há, por óbvio, segurança jurídica para os jurisdicionados, nem pacificação dos conflitos.
Grave é a vedação de acesso à jurisdição constitucional, bem assim o impedimento de que se acesse o Supremo Tribunal Federal que é quem tem a última palavra em matéria constitucional.
Com efeito, a discussão constitucional – trazida no bojo de recurso denegado, monocraticamente, sob esse fundamento inconstitucional, morre ali; não há possibilidade de se recorrer, muito menos de se levar a matéria constitucional ao Supremo Tribunal Federal. Contudo, muito diferentemente da repercussão geral, não se trata de uma decisão colegiada, fruto de um amplo debate, em que se propiciou à parte a ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes, como a sustentação oral, despachos de memoriais para convencimentos dos demais julgadores, como é próprio da dinâmica de um colegiado. Não, trata-se decisão discricionária de um único ministro que, inclusive, pode julgar de forma diferente para casos idênticos, sendo mais diversas ainda as decisões no âmbito das (8) oito Turmas do TST. Ou seja, cada ministro identifica os critérios de I a IV do art. 896-A da CLT de acordo com seus próprios critérios, ou seja, a depender da cabeça de cada ministro, a mesma matéria, mesmas partes, pode ou não ser considerada transcendente.
3. Fundamento de ausência de Transcendência por obstáculo processual
Tem causado perplexidade para os jurisdicionados e para a advocacia a invocação do óbice do art. 896-A[5], § 2º, da CLT c/c art. 247, § 2º, do Regimento Interno desta Corte sob o fundamento de constatação de obstáculo processual.
Não há essa previsão do óbice erigido, ao prosseguimento do agravo de instrumento, no permissivo consolidado, o qual, por sinal, destoa do espírito da norma, que elegeu critérios taxativos para a análise da transcendência.
A expressão “entre outros” não pode ser interpretada como autorização legislativa para que se barre qualquer recurso sob o fundamento equivocadoda ausência de transcendência; senão, o legislador não teria tido o cuidado de elencar critérios: econômico, social, político e jurídico.
“Entre outros” só pode ser interpretada de forma positivamente ampliativa para acolher o entendimento óbvio de que algumas arguições se revestem de Transcendência pela própria natureza processual ou constitucional. É o caso, por exemplo, da fundamentação das decisões (Tema 339 da Repercussão Geral), o que sinaliza para a conclusão de que um recurso de revista que traz em seu bojo uma preliminar de nulidade, por negativa de prestação jurisdicional, reveste-se de inegável transcendência. O mesmo se diga com relação a outros processos que envolvam matéria objeto de repercussão geral reconhecida no Supremo Tribunal Federal, como decidiu recentemente aquela Corte.
O critério da Transcendência deve ser positivo e não eliminativo, excludente, mortal para o jurisdicionado, a afastá-lo da jurisdição. Até porque a jurisdição existe para o jurisdicionado (tanto que é provocada) e não para o “jurisdicionador”. Qualquer critério que se transforme em mera barreira para o acesso à entrega da Jurisdição está eivado de inconstitucionalidade. O que se consegue interpretar da essência da norma é que, concluída a análise prévia de que a causa tem ou não tem Transcendência, há dois caminhos:
Primeiro: Se a resposta for negativa, não seria uma boa causa para ocupar o Tribunal e o recurso seria denegado por ausência de Transcendência em decisão FUNDAMENTADA. Todas as decisões devem ser fundamentadas por expressa previsão do inciso IX do art. 93 da Constituição Federal e do § 1º do art. 789 do CPC. Fundamentada com a explicitação de qual critério, entre os elencados nos incisos I ao IV do art. 896-A da CLT, é pertinente ou são pertinentes na hipótese.
Segundo: Mas, se a resposta é positiva, há transcendência e/ou política, social, econômica, jurídica, prossegue-se na análise dos pressupostos formais e intrínsecos do recuso. Não satisfeitos esses requisitos, o recurso é obstado por insatisfação dos requisitos que o regulamentam e não por ausência de Transcendência, o que vai tornar IRRECORRÍVEL a decisão, no caso de agravo de instrumento, como acontece em muitos processos, em que se apontou, por exemplo, equivocadamente, diga-se de passagem, transcrição do inteiro teor da decisão recorrida[6]. Só nesse aspecto, como demonstrar que não houve transcrição do inteiro teor se a decisão é irrecorrível?
Para finalizar, ressalta-se que se trata de vulneração do princípio de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da Constituição), porque, como no dizer do eminente Professor e Doutor, o Ministro Augusto César Leite de Carvalho:
“O princípio de acesso à justiça não é violado apenas quando o Poder Legislativo inviabiliza expressamente o direito de ação (art. 5º, XXXV, da Constituição), ou constitui um estado de exceção (art. 5º, XXXVII, da Constituição), mas também quando inova regras jurídicas dissuasórias da atuação do Poder Judiciário, considerada sempre a natureza do conflito entregue à discricionariedade do legislador”[7]
[1] XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
[2] § 5o É irrecorrível a decisão monocrática do relator que, em agravo de instrumento em recurso de revista, considerar ausente a transcendência da matéria. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
[3] Art.896-A – O Tribunal Superior do Trabalho, no recurso de revista, examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.226, de 4.9.2001) § 1o São indicadores de transcendência, entre outros: (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
I – econômica, o elevado valor da causa; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017) II – política, o desrespeito da instância recorrida à jurisprudência sumulada do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017) III – social, a postulação, por reclamante-recorrente, de direito social constitucionalmente assegurado; (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017) IV – jurídica, a existência de questão nova em torno da interpretação da legislação trabalhista. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
[4] ARGINC- 1000845-52.2016.5.02.0461
[5] O Tribunal Superior do Trabalho, no recurso de revista, examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica. § 1º São indicadores de transcendência, entre outros: I – econômica, o elevado valor da causa; II – política, o desrespeito da instância recorrida à jurisprudência sumulada do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal; III – social, a postulação, por reclamante-recorrente, de direito social constitucionalmente assegurado; IV – jurídica, a existência de questão nova em torno da interpretação da legislação trabalhista. § 2° Poderá o relator, monocraticamente, denegar seguimento ao recurso de revista que não demonstrar transcendência, cabendo agravo desta decisão para o colegiado. § 3° Em relação ao recurso que o relator considerou não ter transcendência, o recorrente poderá realizar sustentação oral sobre a questão da transcendência, durante cinco minutos em sessão.§ 4° Mantido o voto do relator quanto à não transcendência do recurso, será lavrado acórdão com fundamentação sucinta, que constituirá decisão irrecorrível no âmbito do tribunal. § 5° É irrecorrível a decisão monocrática do relator que, em agravo de instrumento em recurso de revista, considerar ausente a transcendência da matéria.§ 6° O juízo de admissibilidade do recurso de revista exercido pela Presidência dos Tribunais Regionais do Trabalho limita-se à análise dos pressupostos intrínsecos e extrínsecos do apelo, não abrangendo o critério da transcendência das questões nele veiculadas.” (Grifei).
[6] AIRR- 10067-11.2013.5.06.0023
[7] CARVALHO, Augusto César Leite de, Princípios de Direito do Trabalho, sob a Perspectiva dos Direitos Humanos, São Pulo,: LTr, 2018. (páginas 118-119).
[i] Sílvia Pérola é advogada, professora e fundadora do Instituto Pérola de Treinamento e Capacitação para a Advocacia.