TST reafirma que é da Administração Pública o dever de fiscalizar a despeito de Reclamações Constitucionais

TST reafirma que é da Administração Pública o dever de fiscalizar a despeito de Reclamações Constitucionais[1].

Sílvia Pérola[i]

1. TST revisita o tema

Na sessão da SDI-1[2] do TST, de quinta-feira, dia 10/09/2020, o TST revisitou o tema da “Terceirização, Responsabilidade Subsidiária, Ônus da Prova”[3], em face de Reclamações Constitucionais ao Supremo, tema que já estava pacificado, em sessão completa do órgão uniformizador, do final do ano passado[4]. A SDI-1  ratificou o entendimento de que o STF, ao julgar o RE 760.931 (Tema 246), embora tenha deixado assentado  que a responsabilização do ente público não é automática e que depende da configuração de culpa in vigilando, não enfrentou a discussão acerca do ônus da prova por se tratar de matéria de cunho infraconstitucional, devendo, portanto, ser decidida e pacificada pela Tribunal Superior do Trabalho, como se verifica no trecho do acórdão proferido pela Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, da relatoria do Excelentíssimo Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão:

Após o julgamento dos embargos de declaração e tendo sido expressamente rejeitada a proposta de que fossem parcialmente acolhidos para se esclarecer que o ônus da prova desse fato pertencia ao empregado, pode-se concluir que cabe a esta Corte Superior a definição da matéria, diante de sua natureza eminentemente infraconstitucional.

Da sessão da última quinta-feira, dia 10/09/2020, merece especial registro a fala do Ministro José Roberto Freire Pimenta, a qual se transcreve a seguir:

“O que está em jogo é saber se esses milhares de trabalhadores vão conseguir receber seus direitos trabalhistas
muitas vezes elementares, verbas rescisórias, diferenças salariais e muitos outros….
É só isso e TUDO isso que se discute neste processo
Saber se eles vão conseguir receber porque as empregadoras diretas são inadimplentes e não têm capacidade econômica. Os entes públicos têm sustentado que é enorme e monumental o passivo com relação a esses processos, mas, encaro essa questão pelo outro lado: são direitos trabalhistas elementares que deixaram de ser pagos a estes trabalhadores. Eles vão deixar de receber? Eles não vão receber estes direitos? É preciso que se diga isso em alto e bom som, que este é o significado maior desta discussão. Não podemos perder de vista esta perspectiva que me parece fundamental. E preciso reiterar e relembrar tudo isso”.

A Reclamação Constitucional não tem  o condão de modificar, por si só, uma decisão pacificada pelo Órgão Uniformizador de um Tribunal, pelo contrário, sua natureza jurídica é de ação para preservar a força do precedente, ou seja, parte de um entendimento que já existe e não se presta à composição de conflito social. Contudo, o Tribunal Superior do Trabalho acabou  por enfrentar o mérito dessas Reclamações que ensejaram a revisitação do tema do ônus da prova da fiscalização por parte do ente público.

2. A força do Precedente em cheque

Na sessão de 18/06/2020, ao julgar o processo 62-40.2017.5.20.0009, o Ministro Alexandre Ramos, abriu a divergência que gerou o pedido de vista regimental de todos os processos dessa matéria, pelo Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, que não participou da sessão de 12/12/2019.  O Ministro Alexandre Ramos integra a 4ª Turma do TST, única entre as oito Turmas da Casa que se recusou, deliberadamente, a seguir a decisão da SDI, como exemplifica o seguinte aresto da lavra do Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho: AIRR-11069-96.2015.5.01.0342, 4ª Turma, DEJT 04/09/2020. Na ementa deste acórdão destaca-se a “prevalência dos precedentes do STF sobre os do TST”.

Causa incompreensão e tremenda insegurança jurídica o fato de uma Turma dizer, com todas as letras, que deixa de seguir o entendimento de seu Órgão Uniformizador, hierarquicamente superior, rejeitando a força desse precedente. Principalmente, quando considera que a decisão do Colegiado, de forma completa, contraria precedente do STF e vai na contramão do que disseram os Ministros da SDI-1.

Na sessão da quinta-feira passada, o Ministro Alberto Bresciani declarou essa mesma surpresa por estar a Subseção de Dissídios Individuais-1 revisitando tema que já ficou pacificado, em sua composição completa, no dia 12/12/2019, diante do que prevê o art. 927 do CPC, inserido no capítulo desse Código que cuida da força dos precedentes, invocado expressamente por S.Exa. [5]

O Ministro Bresciani destacou a autoridade do precedente e, citando Melvin Eisenberg,  alertou que não vislumbrava nenhuma das três condições para o overruling: a) que o precedente não mais corresponda a padrões de congruência social e consistência sistêmica; b) que as normas jurídicas não mais sustentem o precedente: c) que fique configurado erro evidente. O Ministro arrematou pontificando que “num sistema que se quer consistente e consequente não basta a mudança de opinião e a indignação para que se venha modificar precedente legitimamente julgado pelo órgão competente para tanto;  aliás, a indignação é sempre a pior conselheira, já dizia Dom Sebastião o rei de Portugal”.

3. Reclamações

A SDI-1 concluiu que a análise das decisões do Supremo, nas Reclamações Constitucionais, não revela, como consta na ementa do Ministro Ives Gandra, supratranscrita, que o ônus da prova é do reclamante e não da Administração Pública. O Colegiado, em mais de um voto, debateu-se na análise dessas Reclamações para consignar que a maioria dos Ministros do Supremo observam o que está consubstanciado no Tema 246, que é a  ausência, ou não, de elementos que comprovam a culpa in vigilando do ente público; tanto Reclamações da 1ª quanto da 2ª Turma, posteriores ao julgamento do RE 760.931, mesmo naquelas que foram amplamente divulgadas um dia antes desse julgamento, inclusive em sede de  agravo regimental (decisões colegiadas, portanto).

Embora o Ministro Hugo Carlos Schuermann tenha destacado em seu voto que lhe causava espanto a revisitação do tema, uma vez ter ficado claro que a responsabilidade subsidiária da Administração não é automática, mas precisa estar comprovada a culpa in vigilando, acabou por invocar, novamente, o art. 67 da Lei nº 8666/1993, “que determina a obrigação imposta por lei”, concluindo que “imputar ao empregado essa fiscalização é a prova diabólica”.

De fato, esta  questão é de relevantíssima importância, uma vez que se estava a exigir de um vulnerável a produção de prova de fato negativo, verdadeira prova diabólica, em uma relação entre seu empregador e terceiro, sem que o hipossuficiente tenha acesso a tal prova e quando, em verdade, é o terceiro ou a empregadora que tem o condão de produzir ou não tais provas – e, frise-se, trabalhador já precarizado, que tem relação de emprego efêmera e frágil.

4. Decisões que tratam da Transcendência, da comprovação de culpa e da infraconstitucionalidade da matéria.

Houve um destaque, ainda, para o fato de as últimas decisões do Supremo, alardeadas às vésperas da sessão, referirem-se, simplesmente, ao tema da Transcendência.[6].

O Ministro Cláudio Brandão, que foi o relator do leading case, citou Reclamações em que há o reconhecimento da culpa in vigilando, dizendo que se tem adotado diferentes fundamentos para manter ou reformar decisões do TST. Entre muitos outros precedentes do STF, destacou-se o 42.597 (de 18/08/2020), em que o Ministro Celso Mello, relator, faz uma análise da interpretação que o STF estabeleceu a partir da ADC 16 e diz que o que ali se decidiu foi a impossibilidade da transferência automática dos encargos trabalhistas, comerciais e previdenciários à Administrações Publica – mas não está impedida a responsabilização subsidiária na hipótese  de se restar demonstrado comportamento culposo, ressaltando que essa diretriz tem sido observada pelo TST,  citando acórdãos de diversas relatorias da Corte. O Ministro Cláudio Brandão finalizou seu voto lembrando que há precedentes desde 2002 no sentido de que ônus da prova não é matéria constitucional.

5. O respeito do TST pelas decisões da Suprema Corte

O Ministro Vieira de Mello lembrou que, na condição de Vice-Presidente do TST, tem a missão de proceder ao controle da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, para que seja efetivada no âmbito da jurisdição trabalhista, e o gerenciamento da jurisprudência do TST no tocante a matéria constitucional, acrescentando que:

“Quero reiterar, neste julgamento, de forma solene, o meu cumprimento à independência dos nossos colegas no julgamento, ao respeito ao princípio da motivação, insculpidos na CF, e o respeito ao Supremo Tribunal Federal”

Os Ministros fizeram questão de enfatizar esse respeito e a observância que o Tribunal Superior do Trabalho tem pelas decisões do Supremo Tribunal Federal, decidindo e refluindo, quando necessário, para se adequar à leitura constitucional de quem tem a palavra final nessa interpretação.

6. O que ficou decidido

Assim, por 10 votos a 4, a Subseção de Dissídios Individuais do TST manteve o entendimento já proclamado, em 12/12/2019, em sua composição completa, de que é do ente público o dever de provar que fiscalizou o contrato e não do terceirizado, como vinha decidindo antes daquela sessão de final de ano. Os votos divergentes foram dos Ministros Maria Cristina Peduzzi, Aloysio Corrêa da Veiga, Breno Medeiros e Alexandre Ramos.

  Destaque-se o voto do Eminente Ministro José Roberto Freire Pimenta, na sessão da SDI-1 do dia 12/12/19, no sentido de que “se a não apresentação de documentos não gera a condenação automática, acaba por gerar a absolvição automática”, o que não se coaduna com a legislação que disciplina o processo licitatório.

A Subseção de Dissídios Individuais deliberou, ainda, com relação aos processos da relatoria do Ministro Alberto Bresciani, o retorno dos processos ao seu gabinete. Com relação aos demais processos, ficou decidido que seriam incluídos no Plenário Virtual, para que tivessem um julgamento conforme o precedente, ficando facultado ao ministro ou ao advogado o pedido de inclusão na sessão telepresencial. Deliberou-se, ainda, que a Secretaria enviasse para cada gabinete uma relação de todos os processos dessa matéria, bem assim, uma Pauta Virtual única para que fossem julgados em bloco com a aplicação do precedente.

7. O que se espera

Uma massa de trabalhadores passa por privações porque emprestaram sua força de trabalho à Administração Pública e não receberam a devida e justa contraprestação no tocante às verbas rescisórias, saldo de salário, cesta-base e parcelas congêneres. Como disse o Ministro Luiz Fux, no julgamento do RE 760.931, “quer dizer, a Administração Pública não tem responsabilidade, o contratado não paga o salário e o empregado trabalhou de graça”.  E continua: “uma Constituição que protege a valorização do trabalho humano, estabelece direitos sociais ao trabalhador e, acima de tudo, tem como um dos fundamentos a dignidade do trabalho, da pessoa, isso realmente soava como algo extremamente injusto”.

Nos processos dessa matéria (só no TST tramitam cerca de 53 mil processos) há grave ofensa ao princípio mor de todos os ordenamentos jurídicos modernos que é o princípio da dignidade da pessoa humana, estampado no art. 1º da Constituição Federal. Também neste artigo que inicia a Constituição Federal está previsto, como destacado pelo Ministro do Supremo, a valorização do Trabalho.[7] Não se pode olvidar essa massa de trabalhadores, valendo clamar ainda pela observância do princípio da moralidade administrativa (art. 37, caput, da Constituição Federal), não se podendo validar a isenção da responsabilidade de entes públicos quanto à mão-de-obra de trabalhadores de que se beneficiou.

Se “o trabalho dignifica o homem”, “o homem é dignificado pelo seu trabalho” (?) quando fica sem receber, como na hipótese?”. Com efeito, trabalhar sem receber é escravidão. E era isso que havia se consumado na situação desses terceirizados com o sumiço das empresas prestadoras e exclusão da responsabilidade subsidiária do ente público, o real tomador de serviços. O entendimento que acabou por prevalecer, depois de muitos votos divergentes, seguidos por ressalvas de alguns ministros, que acabaram se curvando à tese essencial do referido inciso V, foi o da impossibilidade da condenação automática da Administração Pública. E essa conclusão era extraída dos acórdãos regionais que mantinham a condenação pelo que se chamou de “mero inadimplemento”, “mera presunção”. Bastava o ente público não apresentar prova alguma e o Regional consignar que não havia logrado comprovar que fiscalizou, que o TST entendia que se tratava de condenação automática, assentando que a prova da não fiscalização era do reclamante terceirizado.

O que ora se espera é que não haja mais decisões surpresas e nem novos debates acerca do já pacificado, uma vez que a mera indignação de alguns, como lembrou o Ministro Bresciani, não tem o condão de derrubar um precedente e não pode e nem deve comprometer o princípio da segurança jurídica. E como não se pode “constitucionalizar” o tema do ônus da prova, o Supremo Tribunal Federal deve cuidar de matéria constitucional, como decidiu, na hipótese, e o Tribunal Superior do Trabalho é competente e zeloso o suficiente para o mais.


[1] A Corte Trabalhista revisitou o tema da “Terceirização, Responsabilidade Subsidiária, Ônus da Prova”, em face de Reclamações Constitucionais ao Supremo, que já havia sido pacificado, na SDI-1 completa de 12/12/2019 (E-RR-925-07.2016.5.05.0281, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Claudio Mascarenhas Brandao, DEJT 22/05/2020) para reafirmar que é do ente público e não do terceirizado o poder-dever de comprovar que fiscalizou.

[2] SDI-1 – Subseção de Dissídios Individuais 1, que uniformiza a jurisprudência no TST.

[3] no julgamento do processo nº 62-40.2017.5.20.0009

[4] (E-RR-925-07.2016.5.05.0281, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Claudio Mascarenhas Brandao, DEJT 22/05/2020).

[5] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: (…) V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados. § 1º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1º , quando decidirem com fundamento neste artigo. (..) § 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

[6] Art. 896-A da CLT

[7] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…)   III a dignidade da pessoa humana;  IVos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa


[i] Sílvia Pérola é advogada, professora e fundadora do Instituto Pérola de Treinamento e Capacitação para a Advocacia.

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